Um dia desses eu conheci um senhor, funcionário de uma imponente escola na qual palestrei na cidade de São Paulo, que, ouvindo que eu falava sobre Literatura, disse-me, ao final do meu trabalho, que adorava ler. Para dar continuidade à conversa, enquanto esperava o táxi, perguntei o que ele gostava de ler. Senti que ele ficou um pouco embaraçado, pois não lhe ocorria um gênero ou um tÃtulo especÃfico, então ele me disse: “Professor, na verdade, eu gosto mesmo é de ouvir histórias.â€.
Tentando me redimir do embaraço no qual, involuntariamente, envolvi o meu interlocutor, comentei que, no inÃcio, a literatura era oral e que ouvir histórias é uma das mais belas formas de se ler. Ouvir histórias é uma forma de ler saboreando voz, gesto, olhares, expressões e cheiros. Eis que, para minha surpresa, o senhor, Máximo era o nome dele, me perguntou: “É como num café filosófico?â€.
Meio surpreso com a comparação feita, perguntei ao senhor Máximo se ele já havia participado de algum café filosófico e ele me respondeu que sim. Uma única vez. Ele trabalhou como garçom durante um café filosófico com Leandro Karnal. Perguntei sua impressão a respeito do evento e ele me respondeu: “Adorei as histórias que aquele homem contavaâ€.
Despedi-me do simpático senhor, e saà mastigando suas palavras: “Adorei as histórias que aquele homem contavaâ€. Já em Curitiba fui procurar vÃdeos do referido Karnal. Não para ouvi-lo, mas para tentar identificar o senhor com o qual conversei dentre os garçons. Enquanto procurava o senhor Máximo dentre os funcionários, notei que o público do café era formado por pessoas elegantes e de todas as idades. Também notei que bebiam café realmente, afinal era um café filosófico, enquanto ouviam o palestrante que, trabalhando sentado, tinha à sua frente somente alguns papéis e um copo d’água.
Em um mundo cada vez mais dinâmico e lÃquido as pessoas não conseguem mais se ouvir nem ouvir o outro. As pessoas só falam, postam, curtem, seguem à s cegas, fotografam, compartilham, compram likes, tiram selfie, postam “instagraneamente†os selfies tirados, mas não param para ouvir nada. Ouvir requer tempo. A propagação da voz, som que conta, necessita de tempo para chegar ao ouvido da vida que vive. Um tempo que não temos mais. A literatura de autoajuda que “tanto autoajudava†as pessoas já não autoajuda mais, pois esbarra no detalhe e no entalhe do tempo. As pessoas não têm mais tempo nem para se autoajudarem por meio da leitura.
Nunca necessitamos tanto do ouvir quanto hoje. Não precisamos ir a um terapeuta para falar, mas precisamos, urgentemente, ir a um terapeuta para ouvir. Talvez ouvir seja a terapia do século. Precisamos nos tratar por meio de uma “auscutoterapia†induzida.
É aà que entra em pleno século XXI, com suas maluquices FACEiras, a figura do velho contador de histórias. É isso que Leandro Karnal faz: conta histórias. Mas Karnal não é um contador qualquer. Ele é branco, magro, olhos claros, elegante, professor universitário, portador de uma careca tão reluzente quanto a sua oratória e, coincidentemente, historiador.
O senhor Leandro usa seu conhecimento de História para contar histórias. Um bom contador precisa ter repertório e precisa se metamorfosear como um Ulisses. Karnal não é filósofo, mas filosofa. Não é literato nem dramaturgo, mas fala sobre Hamlet e poesia. Ele não é terapeuta, mas leva a uma ausculta. E, acima de tudo, falando obviedades que as pessoas não têm tempo para ouvir, ler ou sentir, ele conta sobre a vida que as pessoas não vivem.
Infelizmente, chegamos a um ponto em que é preciso que alguém nos conte sobre nós mesmos, pois já não temos tempo para fazer história, muito menos para conta-la aos outros e a nós mesmos. Karnal encarna o contador de histórias do século XXI.
Enquanto a plateia, em pleno café e entre convivas, silenciosamente goza por pensar que está bebendo do Graal da Literatura, sorvendo o sumo da Filosofia que escorre da boca, não de um filósofo, mas de um historiador, estão todos, na verdade, fazendo terapia. Uma “auscutoterapia†induzida e travestida de filosofia para ser digerida intelectualmente.
Nos vÃdeos que assisti, enquanto todos no café se achavam eruditos por ouvirem filosofia, enquanto o senhor Karnal se achava a estrela por ouvir risos de aprovação e aplausos, apenas um, dentre todos os presentes, ouvia histórias e não se achava, pois, mesmo com a bandeja na mão, ele era o Máximo.
Professor Robson Lima